Pesadelo

06 de março de 2018

Em um devanear de outro dia, gabava-me de na vida só ter tido dois ou três pesadelos. Devo ter exagerado para menos. Terão sido pelo menos dez a doze. De qualquer forma, numa vida que já vai longe, é pouco. No sossego da velhice não os tive mais.

Porém, nessa madrugada lisboeta (falo madrugada para o dia já avançado, oito da manhã. Como se fosse cinco no Recife), nessa madrugada, dizia, acordei de um pesadelo. Freud associava alguns sonhos a fragmentos do dia.

O que conto primeiro? O sonho? Ou o fragmento do dia?

Vamos ao pesadelo, que assim tiro-o de meu colchão, jogo pela porta do meu miradouro particular às primeiras e únicas baforadas do dia. Depois de um limão galego (que aqui custa menos que o outro, nosso, de qualquer quintal vagabundo) espremido em um copo de água tépida.

A cena tem início na casa de muro de pedras na Vila Mariana, sede do Cebrap. Estamos saindo de algo como uma palestra no auditório. Junto de mim, uma moça que acabo de conhecer, guiando um carrinho de criança, com dificuldade para atravessar escadas e cimentados intercalados com gramas e outras plantas. É rosadinha, a menina, a cor do rosto de criança em clima frio. Ora dorme, ora ri. Observo como sua filhinha é encantadora. Por todo aquele tempo, não a ouvi chorar nenhuma vez. A mãe fica satisfeita. Qual melhor elogio para uma mãe do que alguém falar bem de seus filhos?

Paramos aos degraus do portão de saída. Há muitos mais, além dessa moça. Não tenho lembrança de a nenhum conhecer. Alguém sugere irmos ao fundo da casa, no quintal, onde tem um restaurante. Porém nos deparamos com uma obra em andamento. Perguntamos ao pedreiro se tem previsão de abrir e ele não sabe informar.

Aqui não posso resistir a um fragmento de ontem. Procurava uma lavanderia na rua da Graça, quando passo em frente ao Pingo Doce, o melhor supermercado do bairro. Em obras. Pergunto ao pedreiro quando voltará a funcionar e ele não sabe me informar. A empregada da farmácia me havia dito que talvez na próxima semana. Fiquei contente com a possibilidade de rever, antes de voltar ao Brasil, um supermercado que tem entrada cerimoniosa de casa antiga. Em outros tempos, foi um cinema.

Voltamos ao portão de entrada e ali nos dispersamos. Alguns vão pegar seus automóveis, outros vão a pontos de ônibus. Eu caminho em direção oposta aos demais, em busca de um taxi. Começa aqui o pesadelo. Vejo um taxi adiante, dou com a mão e ele parece ter parado. Dirijo-me com pressa a um local cheio de escadarias, com um único beco por onde o taxi foi embora sem me esperar. Ao me voltar para continuar a busca, deparo-me com um rapaz que está parado no trânsito inexistente conduzindo uma espécie de trator.

Daí em diante, ruas e ruas, ladeiras, escadas que conectam ruas, nenhuma pessoa, nenhum automóvel, nenhum meio de transporte. A única coisa que quero é encontrar um taxi e voltar para casa. Penso no meu pai, que a essa hora já deve estar preocupado com minha demora para chegar em casa. Quanto mais ando, mais me perco. Daqui a pouco chegará a noite e tudo será pior. Penso na rua Minas Gerais, na Ilha do Leite. Algo me diz que está ali perto e lá encontrarei a casa de uma tia. Acordo encolhida, gemendo baixinho.

O fragmento do dia nem vou ter o trabalho de escrever. É só copiar a mensagem de whatsapp recebida ontem e a minha resposta.

“Ontem ao entardecer, recebi uma ligação a cobrar. A pessoa identificou-se como sendo da telefônica, dizendo que meu telefone estava com linha cruzada e ela iria consertar. Estranhei a ligação e disse-lhe que aquela companhia não liga a cobrar. Ela insistiu para que eu discasse: 21*0211581172839#. Não disquei e falei pelo 190 com a Polícia.

O policial disse-me que esta é uma ligação do Comando Vermelho, das penitenciárias do Rio de Janeiro. Esse número, se acionado, é mais que um clone, é uma extensão de seu telefone. A partir daí, ouvem tudo o que você fala e, se for do interesse deles, começam a lhe ameaçar. Isto é sério e extremamente perigoso.

Avisem a todos os seus familiares, amigos, principalmente os mais idosos, empregadas, adolescentes, enfim, aqueles que, sem maiores preocupações, possam cair nessa conversa.

O próprio policial pediu-me para divulgar. Inclusive, se conhecesse alguém da imprensa, pedir também para eles divulgarem, pois, infelizmente, o golpe já está fazendo vítimas em várias localidades.

Não deixe de repassar esta mensagem.

URGENTE!!!”

As únicas palavras do amigo remetente: “Mensagem útil. Repassando”.

Ao que respondi, Meu deus, estamos em guerra civil, amigo. Aqui em Lisboa até a doida que frequenta o fado na Tasca do Jaime sabe disso. Pois, dessa vez, são os brasileiros ricos que fogem desesperados do país. Os que não fogem, a maioria, escondem-se em fortalezas gradeadas, em carros com janelas trancadas com medo de meninos de rua. E repassam centenas dessas mensagens. A doida do fado aparece na crônica dessa sexta na Será.

O pastoril

28 de fevereiro de 2018

Viaja a meu lado, ocupando duas das cadeiras do meio do avião, um casal gay. Dois rapazes. Afora serem alegres, são simpáticos, inteligentes. A humanidade caminha depressa na mudança de costumes, para acompanhar a correria da tecnologia. A reprodução separa-se do prazer, do sexo. Estes, escolhe-se entre diferentes ou iguais. E assim anda o mundo.

As companhias aéreas, os hotéis, o turismo, a propaganda, correm atrás desse novo público ávido dos prazeres da vida. A política tão pobre, a economia tão confusa. A sociedade, essa caminha com seus próprios pés, a passos rápidos, junto à tecnologia. Nós, os velhos, precisamos quatro patas aos pés e quatro mãos aos membros superiores para acompanhar o correr dessa nova era. E vamos que vamos, invertendo a ordem das coisas, os idosos aprendendo com os jovens. Vejam bem, que revolução!

Em homenagem a todos os gays, na mesinha de comer da aeronave, escrevo em vermelho no meu caderno de capa azul. Um pastoril.

Pastoril é uma festa que herdamos dos ibéricos da Idade Média. Uma idade muito dificultosa, porém tão rica em cultura que chega a nossos dias, tendo atravessado oceanos. Tudo porque os mouros invadiram a dita península em idos tempos. Invasores, eram vistos como o cão dos infernos e foram associados à cor encarnada. Os ibéricos, cristãos, ao azul do céu. Daí nasceram as cavalhadas e o pastoril.

A mim, coube-me o pastoril. Que festa bonita! Porém não posso dizer do pastoril sem antes me referir a um padre. O padre Victor, um holandês da ordem religiosa dos Redentoristas, foi aportar em Garanhuns. Comprava muita briga com os crentes. Era cioso da fé católica. Naquele tempo ainda se rezava a missa em latim e havia silêncio e recolhimento na igreja católica. Os crentes eram mais barulhentos, com autofalantes para fora da igreja para que todos ouvissem a pregação do pastor. E os crentes não rezavam em silêncio, mas oravam com voracidade. Por isso, nas brigas entre católicos e protestantes, aqueles chamavam a estes, pejorativamente, bodes, os que muito berram. O padre Víctor era um dos grandes protagonistas desta briga. Hoje, estaria incondicionalmente perdido na disputa.

Um médico de Garanhuns, o Doutor Otoniel Gueiros, amigo de meu pai, era um homem bem humorado e se dizia bode em grandes risadas. Porém, amedrontado, deixou sua clientela ao Doutor Sales. Tivera o azar de não chegar a tempo de salvar a parturiente. Ficou o filho órfão de mãe. Voltou da roça para Garanhuns embaixo de tiros de espingarda.

Naquele tempo e naqueles Agrestes, o médico era chamado para fazer partos se a parteira não desse conta do recado. Tanto que, quando de minha pesquisa para a tese de doutorado, entrevistando uma tia de Lula, quis saber se o parto de dona Lindu, ao nascimento dele, havia sido dificultoso. Não, disse-me ela, comadre Lindu deu à luz todos os filhos com parteira. Caso contrário, teria sido meu pai a botar no mundo um presidente da república, no mesmo ano em que nasci.

Garanhuns não era fácil, na sua conexão direta com as Alagoas do Sindicato do Crime. Pistoleiros pobres, coitados, ganhando uma miséria por assassinato cometido a mando. Conheci um deles, que todos nós, ainda meninos, chamávamos de Compadre Severo. Filho todo ano, sem dinheiro para pagar o parto, o doutor Sales era convidado para padrinho. Além do enxoval da criança, uma das filhas meninas era madrinha de apresentar ou consagração. A quantas festas de batizado de gente pobre terei ido na minha infância? E o Compadre Severo arrematava, Dinheiro não tenho, doutor, mas qualquer tempo que o senhor precisar de qualquer serviço, para o senhor não cobro nada.

O pastoril que o Padre Victor organizava (para angariar fundos à igreja) era animado, no bairro de Heliópolis. Assim batizado pelo tio de Fernando Dourado, a quem ele puxou na fanfarronice. Mas o nome não pegou, pois todos sabiam que ali era o Arraial. Na época do Advento (na liturgia católica, o que antecede o Natal), o padre Victor realizava o pastoril, em um terreno grande na frente da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Sempre torci pelo cordão azul. “Azul é o céu, azul é o mar, azul é a rainha que nós vamos coroar”, era nosso refrão. E assim continuei, mesmo depois que passei a brincar o carnaval, puro encarnado, mesmo depois de virar comunista no tempo de estudante universitária. Torcida de pastoril se parece muito com a de futebol, uma vez Santa Cruz, Santa Cruz sempre.

Sabia-me muito tímida para ser a contra-mestra do cordão azul. Me conformaria ( conformar-me-ia é feio demais para ser português correto) em ser a última das pastoras. Meu pai, porém, não permitia. O palco do pastoril ficava num tablado acima do chão de terra batida, um palco, e os rapazes iam apostar num dos cordões para ver as pernas das meninas-moças.

Um dia, com idade para ser avó, realizei meu sonho de ser pastora. Mais que pastora, a própria contra-mestra, quem sai na frente do cordão, comandando as pastoras em fila, em cantos e danças de uma inocência que depois foi profanada em pastoris de putas em tudo que era ponta de rua de tudo que é cidade de meu Pernambuco.

Para a festa de Aldeia, que originalmente seria na casa da mestra do cordão encarnado, muitos amigos foram convidados. No convite para vários, sabedora eu de sua torcida pelo encarnado, fiz uma pequena chantagem: viriam à festa com a condição de torcer pelo azul. Um deles, Sílvio Ernesto, torceu de fato. Mas, ironicamente, vestido com uma camisa encarnada.

Velhinhos do mundo, uni-vos

01 de março de 2018

Por que a gente acorda todos os dias com um sentimento de obrigação? Um sonho bom pode nos deixar ainda um pouco de olhos fechados, devaneando sobre o que se passou enquanto estivemos viajando em outros tempos, outros lugares. Às vezes nos demoramos aí uns cinco, dez minutos. Terá sido muito. Pois o sentimento de obrigação chega rápido para expulsar o devaneio.

Acorda! Ao trabalho! Pode não ser nada, só uma besteira. Como hoje, por exemplo. Acordei de um sono reparador – oito horas sem parar – e o primeiro pensamento, já com os pés no chão para ir ao primeiro xixi do dia, é que preciso fazer mercado.

Sim, eu sei que essa deverá ser a primeira tarefa do dia. A segunda é telefonar ao dono do apartamento para ele me auxiliar com a internet, que não está conectando. E a última, ligar para Edinha, na minha casa do Brasil, para ela guardar em lugar seguro os mil euros e mil dólares que deixei em cima da mesa, dentro da bolsa que deveria ter viajado amarrada à minha barriga.

Providências simples, fáceis. Não terei que decidir como articular uma candidatura à presidência do país numa reunião daqui a pouco. O conteúdo das tarefas que tenho para o dia de hoje é trivial. Por que esse sentimento de obrigação? É parte constitutiva nossa de ser adulto. Os meninos acordam com o sentimento de brincar. Quaisquer outras tarefas, é desvio de rota. Ou eles as transformam em brincadeira.

Ontem cheguei em Lisboa. Ainda no aeroporto dos Guararapes, aguardando a chamada do voo da TAP, a moça anuncia: adultos com crianças, pessoas necessitadas de cuidados especiais e idosos de mais de oitenta anos, dirijam-se à fila da esquerda. Por nada desse mundo deixaria de ir à fila da esquerda. Enquanto para lá me dirijo, já matutando que minha coluna torta merece cuidados especiais (caso a moça confrontasse minha idade no passaporte), penso na demografia.

Vejam bem, leitores, mire e veja, Oitenta anos! Com exceção dos muito pobres ou muito religiosos, que ainda são mais da metade do mundo, somos uma sociedade de velhos. Velhinhos do mundo, uni-vos! Mudamos a agenda de prioridade de muitas políticas públicas.

Só me dei conta de que esquecera a bolsa com os dinheiros em cima da mesa, quando em cima do Oceano Atlântico. Na minha carteira, alguns reais e duzentos e cinquenta e cinco euros. Nessa viagem planejara fazer menos gastos no cartão e mais em efetivos, como diria algum contador. Mas isso não chegou a tirar mais do que alguns minutos de preocupação. Possivelmente esses euros serão suficientes para as poucas despesas em que não se pode usar cartão de crédito. E, em último caso, este também poderá retirar dinheiro vivo em qualquer caixa de rua. E salve o plástico e outros meios mais que a tecnologia inventará para substituir o vil metal.

A rua

02 de março de 2018

Chove em Lisboa às oito horas da manhã e aqui estou mantendo a mesma rotina de acordar do Brasil, onde agora são cinco horas da madrugada. Com uma capa de chuva fazendo as vezes do robe que não trouxe na mala, corro à porta que se abre para uma minúscula varanda. Trinta e quatro centímetros entre a balaustrada de ferro trabalhado, encimada de madeira resistente a todas as intempéries do ano, e a porta. O espaço seria melhor nomeado de miradouro.

O frio seco da manhã, assim como a água fria da torneira, são agradáveis à pele do rosto e detestáveis ao pescoço, à cabeça, às mãos. Estou na rua da Verônica, número cento e cinquenta e dois, apartamento segundo andar à direita. Assim ele é nomeado na caixa de correspondência e nos correios: apartamento segundo direita. Não tem erro: sobe-se dois lances de escadas, olha-se à direita, cá está meu apartamento.

Um homem do Corpo de Bombeiros que olhasse de uma das dez janelas perfeitamente alinhadas à frente de meu miradouro (janelas que não se abrem nunca, não me dando chance de uma indiscreta), veria uma mulher de cabelos grisalhos, descobertos de chapéu ou guarda chuva, porque seu miradouro lhe protege da água  de nuvens escuras.

Ele poderia se perguntar o que faz essa senhora, que ainda nem escovou os dentes, a olhar sem razão os que passam na rua? Não tem o que fazer, preparar o café da manhã, que já são horas, varrer e espanar a casa, ocupar-se de alguma coisa?

Não. Ela espia. Passam muitos escolares com suas mochilas às costas, a alegria juvenil a contar as aventuras da véspera. Passam trabalhadores, dirigem-se aos pontos de ônibus. Ou ao terminal do elétrico, o 28. Daqui vejo o círculo que faz os trilhos no chão de pedras portuguesas.

Espia e pensa com uma certa melancolia de tempos passados. Quando em sua terra ainda se caminhava pelas ruas, como aqui ela vê. A rua, esse espaço de cidadania que a guerra civil destruiu nas nossas ruas, onde vivemos o tempo do medo.

Esse monstro de segmentação social que é a sociedade brasileira de nossos dias não foi criado, como querem os que se dividem tão bestamente entre coxinhas e mortadelas, por governos esses ou aqueles, direita, esquerda, volver. Foi sendo gerado devagar, pela própria sociedade. Hoje, que o monstro aparece à luz do dia, horrendo, tomando a frente de todos os noticiários, uns se escondem dentro de fortalezas. Outros se defendem como podem nas filas dos hospitais, nos becos escuros onde correm as drogas clandestinas.

E a mulher pensa ainda que fez muito bem quando deixou seu título de eleitor perdido para sempre num distrito rural da Serra da Mantiqueira, um pedaço de paraíso na terra onde todos podem deixar a porta de casa aberta e receberão os forasteiros com uma quitanda, o nosso cafezinho. A partir dos setenta anos, a Unicamp já não exigirá comprovação de voto para liberar sua aposentadoria. Aposta hoje, essa velha, em caminhos que não passam pelo voto, mas pela coragem de jovens que principiam a ocupar as ruas, o espaço público da cidadania. Como ela é velha, fica no seu canto olhando pela janela, ou pela porta desse miradouro. Apreciando a vida passar.

No tempo em que os animais falavam

17 de fevereiro de 2018

O sonho que acaba de me acordar se passa no tempo em que os animais falavam. Foi um sonho bom. As vezes a gente nem se lembra mais do sonho: nem do enredo; nem do cenário; nem da música; nem dos personagens. Mas, pelo humor com que acorda, sabe se o sonho foi bom ou ruim.

O pior de todos é pesadelo. Deus e a Virgem Maria me defendam dos pesadelos. E vão me guardando porque nessa vida, que já vai longe, não tive mais que dois ou três.

O sonho dessa noite, como estava dizendo, se passou no tempo em que os bichos falavam. E eu escrevia no caderno novo. Caderno novo para mim é como sapato novo de quando era pequena. Meu pai, um homem de posses. Em 1951 comprou um Ford 51. Não entendo porque na minha casa se fazia economia de sapato. Em todo roçado brasileiro, calçado novo, só na noite de festa, uma vez por ano.

Na minha casa nem precisava ser Natal e Ano Novo. Era quando os sapatos velhos ameaçavam ficar apertados. Menino tem essa mania de crescer os pés. Então só existiam dois pares de sapato para cada filho: o sapato novo e o sapato velho. Este não era para ser jogado fora quando chegasse o outro. Ficava guardado de parelha com o novo, na mesma prateleira ou embaixo da cama. Os novos eram reservados para os dias e ocasiões especiais: dia de domingo, a missa, festa no colégio, visita. Os velhos continuavam no batente enquanto os pés aguentassem. Quando começavam a apertar, os novos já estavam amaciados pelos dias festivos, embora ainda um pouco grandes.

Sim, ia esquecendo esse detalhe importantíssimo: os sapatos eram comprados um número maior do que os pés, antevendo que esses cresceriam durante o ano.

Como disse, menino possui o mau costume de crescer os pés. E eu, o de sair da rodagem por onde principio a narrativa e me desviar por atalhos. Volto ao sonho bom, do tempo em que os animais ditos irracionais falavam. No sonho eu escrevo. Estou sentada numa cadeira rústica e dura de madeira, escrevendo em uma mesinha escolar. O tempo está nublado. Uma brisa chega a meu corpo de algum mar distante. O lugar onde estou sentada é uma clareira, o terreiro da frente de uma casa de fazenda. Como está nublado e fresquinho, estou totalmente descoberta. Nem sombra de árvore no lugar onde permaneço sentada à escrivaninha, percorrendo a caneta na folha com prazer.

Nisso, sou interrompida pelo primeiro animal. Um burro.

Tem bicho mais simpático do que burro? Luiz Gonzaga sabia disso. No sonho, os animais são minhas personagens. Eles estão ali para conversar comigo e me dizer como querem aparecer no livro. Uns mais, outros menos, sabem que estou escrevendo um romance.

No tempo em que os animais falavam, e liam, os burros eram os maiores apreciadores de romance.

Abro um sorriso, o meu melhor. Ele não sabe sorrir como os humanos. Mas, pelo brilho de seus olhos, percebo que está rindo em retribuição. Recita uma poesia. Bato palmas. E ele se retira, como quem sai de cena para dar vez aos que esperam na fila que, dei fé, estava enorme, quase chegando à cerca do curral.

A galinha nada disse. Chegou com uma cesta de ovos fresquinhos e brancos. Colocou em cima da mesa. Galinha é cópia fiel de dona de casa, atarefada o dia inteiro. Só descansa na hora de dormir no poleiro. Ou quando o galo lhe pede favores de prazer, que ela nunca nega porque não tem nada de menos no seu coração.

A fila de animais já estava quase do tamanho da que enfrentei outro dia no posto de saúde onde consegui, depois de quatro tentativas em outros, vacinar-me contra Febre Amarela, requisito para entrar no Cabo Verde. Não havia reparado no tamanho dela porque prestava atenção a cada um à minha frente. E sabe quem, atrás da galinha? Uma sabiá! De todos, meu passarinho preferido.

Sei que há os machos e as fêmeas. Porém, para mim, pelo nome, Sabiá, é sempre fêmea. Diferente da galinha, que nada falou, a sabiá pousou no outro lado da mesa, contrário à cesta de ovos.

Gosto muito dos pássaros. Longe, soltos. Tenho um quase pânico se algum bicho voador chegar perto de mim. Faz tempo: estava deitada na cama conversando ao telefone com uma amiga. O janelão do quarto aberto de par em par. Um bem-te-vi entrou. Gritei, larguei o telefone fora do gancho e saí correndo. Fechei a porta por fora e fui chamar Zuleide que preparava o almoço na cozinha. Rimos depois. E só então me lembrei da amiga pendurada no telefone, pensando sei lá o quê. Continuava na linha, coitada, e suspirou aliviada com o ocorrido.

A sabiá do sonho, tão perto de mim, sem nenhum vidro de janela a nos separar, não me fez sair correndo. Parecia um desenho de livro infantil. Vi seu bico se abrindo. Cantou para mim a melodia única de seu repertório e também bati palmas.

Acordei com o bafo da vaquinha ainda quente no meu pescoço. Ao contrário das personagens que lhe sucederam, a vaquinha não ficou na minha frente. Arrodeou a mesa e postou-se atrás de mim. Senti um calorzinho gostoso, que contrastava com a brisa que esfriara, ameaçando chuva. E vim correndo escrever o sonho antes que a vigília o expulsasse, como costuma fazer o dia com a noite.

E pensei: Há muitos e muitos anos, os bichos já falavam, com esse mesmo bafo uma vaquinha aqueceu um menino novo. O lugar era quente durante o dia, mas pela madrugada esfriava. O enxoval daquela criança, pobre, não tinha cobertor. E o menino ficou confortável embaixo da respiração da vaquinha. Aqueceu seu ori. Quando cresceu, saía de sua boca palavras de sabedoria e distribuiu sonhos por onde andou.

Mãe Tapuinhas

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18 de fevereiro de 2018

Deus teria autoridade para baixar decretos. O parágrafo primeiro afirmaria que, em todas as cidades do Brasil em que houvesse mar, nunca choveria aos domingos. É o dia em que menino não tem aula. Existe coisa melhor para menino fora da escola do que brincar na praia? Jogar bola, atrapalhando os adultos que querem tomar cerveja. Construir castelos, fazer piscinas onde só cabe uma pessoa, voltando a ser o único cercado de água por todos os lados. Na praia menino corre. E menino adora correr.

Vejam bem a fotografia que ilustra essa crônica. Nós ainda em fevereiro, mal acabou o carnaval. Já são 6:45. Já era para ter ciclistas na ciclovia, domingueiros, corredores, caminhantes, homens chegando suas carroças para montar restaurante de praia. Quanto prejuízo para o comércio um domingo sem sol!

Como não sou deus, vou contar o sucedido sexta feira passada. Afinal, isso aqui é crônica social, tem compasso certo para compor o texto. Não é sair por aí devaneando em ser divindade, isso e aquilo.

Mas, voltando ao assunto, quem não gosta de ser deus? Seus poderes são infinitos.

Existia uma freirinha que era coordenadora do Programa de Religião na PUC de São Paulo. O curso andava recebendo as piores avaliações da CAPES. Cândido Procópio Ferreira de Camargo, seu superior hierárquico naquela universidade, chamou-a para uma conversa. Mostrou quadros com números e curvas que sua secretária organizara especialmente para essa delicada reunião. Na sala, somente ele e a freira, sendo ela há muito mais tempo professora da casa. Quando entrou no assunto do curso, das notas, a freirinha tomou ares, tirou os óculos de leitura, olhou firme para sua autoridade imediata, Quem é a Capes, professor, para me julgar? Para me julgar, só Deus! Procópio contava esse caso com uma graça …

Algumas profissões aproximam mais a pessoa de deus do que outras. Falo por mim, que fui professora. O momento em que mais a gente chega perto da divindade que julga, aceita ou condena, é durante a seleção de alunos para mestrado e doutorado. Seleção para contratar professor. Existem regras, critérios objetivos, estamos pisando no terreno da ciência. Porém, nessa hora, exige-se mais do professor. Ao final da maratona, percorridos todos os obstáculos, Quem? Esse ou aquele? Somos deuses no Olimpo julgando pobres e inseguros terrenos.

Acabado o carnaval, a vida retoma seu curso. Amanhã, a primeira segunda feira depois, é quando se pode dizer que o país inicia o ano. Hoje, último dia do feriadão. Não seria justo, justamente hoje, um domingo de sol?

O caso da última sexta feira. Sucedeu-se numa casa de bairro afastado de uma cidadezinha que poderia estar em qualquer sítio do interior do Nordeste brasileiro. Mulheres, homens, meninos, galinhas, andando, brincando, ciscando pela rua. O carro pede licença para passar. Se for mulher ou galinha, é tiro e queda: vendo o automóvel, atravessa para o outro lado da rua. Tem explicação? Não.

O waze avisa que chegamos a nosso destino. Tocamos a campainha, pregada no alto de um portão de alumínio. Um rapaz de cerca de vinte anos vem nos atender. Diz que a mãe está na sala. Conduz-nos até lá. Fosse um prédio de luxo na rua Cristiano Vianna em Pinheiros, São Paulo, aquilo poderia ser um loft: em espaço único, com pé direito alto. A casa está inacabada, faltando colocar o forro e separar cozinha e quartos. A mulher que procurávamos está sentada em um colchão no chão, à maneira de sofá, ladeada por uma filha e umas crianças, possivelmente netos.

Já sabíamos que atendia sem hora marcada, por ordem de chegada. Havia me preparado para grandes esperas. Saindo de casa, meu irmão viu o livro, Livrinho de viagem? 947 páginas de uma história boa e emocionante, mesmo descontando o não ser contada com a régua da literatura. Fosse, a menina não faria reflexões adultas. Refiro-me a Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves.

O livro foi e voltou sem serventia porque tivemos a sorte de não haver ninguém na fila e sermos os primeiros. O mesmo filho que nos atendeu ao portão, conduz-nos, cozinha afora, por um quintal com plantas, árvores, pé de pimenta, de quiabo … Retira duas cadeiras de plástico verde de um empilhado delas. Ele próprio fica em pé, encostado na parede do terraço onde estamos. Faz-nos sala enquanto a mãe não chega.

xxx

Uma menina traz um copo d’água. Copo grande, de aço. Entrega ao rapaz, que interrompe nossa conversa para levar o copo ao quarto. Ainda não o vimos, embora a porta esteja aberta.

Chega a mulher, andando em passos lentos pelo mesmo caminho que fizemos no quintal. Veste roupa branca de algodão bordado, que antigamente se chamava cassa, saia rodada e blusa folgada de mangas até o meio dos braços. Ao pescoço, uma echarpe que à frente desce até a cintura, de tecido sintético fino, verde, brilhante. Conduz-nos para seu espaço sagrado. Sentamos em duas cadeiras emparelhadas, encostadas na parede oposta ao altar, defronte. A cadeira dela está ao lado do altar. Não a ocupa ainda. Vem até nós saber o que nos trouxe lá. Meu irmão fala. Ela se dirige a mim. Digo que a consulta é para ele, estou de acompanhante. Como continua na minha frente, de pé, olhando para mim, digo de minha coluna, da qual cuido desde os doze anos de idade e que já sei como lidar com isso. Torta, não é minha fia? Você não carece. Já tem traçada sua missão no mundo.

Deixa-nos sentados e se dirige ao altar. Nas paredes, fotografias de santos de quase todas as religiões conhecidas do povo, coração de Jesus e Maria, São Jorge com sua lança, montado no cavalo, Jesus com os discípulos, a índia Tapuinhas. No altar, incenso apagado, três velas acesas, sendo uma de sete dias. O copo d’água fresca trazido de casa, cadernos, pasta, imagens, uma de Padre Cícero do mesmo tamanho da minha, pequena.

A 1:35 da tarde a mulher se dirige ao altar. Fica de costas para nós, como nas celebrações de missa em latim. Está de pé. Com as duas mãos postas no altar, principia uma invocação aos santos todos que estão no altar, nas paredes, os que não estão à vista. Sua voz é lenta, melodiosa, quase um canto. Pede licença para entrar na Mata, espaço sagrado, onde encontrará a força da Jurema. Lá irá encontrar a índia Tapuinhas. Canta uma cantiga pobre como a dos passarinhos, Oh Jurema, meu juremal. E continua a reza, Glória a Deus nas alturas, paz aos homens na terra. Livrai-me e defendei-me de todo o mal. Deus pai. O meu ponto é Umbanda, Saravá Yeyê. Salve mãe sereia, mãe Iemanjá. Saravá meu rei Salomão, para o pai poder trabalhar.

Quando encerra a prece, maior do que o que vai aqui escrito, está serena. Ouve-se apenas o baruho do vento e canto nenhum de passarinho, que eles apreciam mais os horários do madrugar e do entardecer.

A mãe índia, já incorporada, solta os cabelos longos, ainda voltada para o altar. Virando-se de costas, vem na nossa direção. Dirige-se para mim. Seu olhar, seu sorriso, é de quem me reconhece de algum espaço que não identifico. Talvez nem ela. Manda que meu irmão coloque a cadeira onde está sentado diante da sua, ao lado do altar. Nenhuma diferença entre a cadeira dela e as nossas, todas as mais baratas que se encontraria numa loja.

Você venha também, me diz. Sente-se aqui ao lado de seu irmão. Formamos um triângulo, pois minha cadeira, também defronte dela, está entre a sua e a do paciente, bem próxima ao altar.

Para ver seu rim, meu fio, carece virar de costas. Meu irmão se escancha no espaldar da cadeira. Ela toca na área de seu rim direito. Tiro a camisa? Tire, meu fio.

Todos os meus sentidos estão a postos. A índia não queria fotografia e eu faço radical, Está certo, minha mãe, vou desligar o aparelho. É um estranho aqui.

Por sobre a mesa há também um vidro de plástico de alfazema. A mãe índia, depois dos primeiros toques, pede pela primeira vez meus préstimos de enfermeira, Bote alfazema aqui nos meus dedos, minha fia. Continua o toque, quase em círculos, com todos os dedos da pequenina mão. Depois saberei pelo meu irmão que não é toque vigoroso de massagem. Mãos leves de quem auscuta entranhas.

Ói, minha fia, tá saindo!

Como fosse uma trouxinha de buxada, pequena, do tamanho de uma bola de gude. Vai empurrando a trouxinha por todos os lados. Dedos que trabalham com precisão cirúrgica. Quando sai todo o conteúdo, fosse cabeça de criança na hora de nascer, com a mão esquerda segura a ponta da trouxinha com os dedos indicador e polegar em pinça. Com dedos da mão direita, segura o lugar de onde saiu, enquanto coloca a primeira coisa ruim num prato branco de louça.

Suspira. Ao retirar os dedos da mão direita do lugar de onde acabou de sair a coisa ruim, permanece por alguns segundos uma reentrância no tecido da pele, que antes se alongara até expulsar a coisa maligna. Menos de um minuto, a pele já voltou ao normal, sem nenhum sinal de corte ou furo.

A índia Tapuinhas toma um gole d’água. Explica: esse catimbó não foi feito pra ele, mas, com o corpo muito aberto, pegou, num momento de distração, passando pela coisa feita.

Volta ao mesmo rim. O outro está sadio. Desce mais um pouco as mãos. Os mesmos procedimentos, o mesmo pedido de auxilio por água de alfazema. Sai uma segunda trouxinha, de tamanho um pouco maior, mais nojenta, embora não se veja o conteúdo do que está dentro da película de fino couro semelhando a que se usa para cozer as vísceras na buxada. Algo vermelho, cor de sangue pisado, misturado a outras cores. Mostra ao paciente, antes de colocar no prato.

Ele está concentrado, em meditação. Interrompe quando a mulher, pela primeira vez desde que principiou o procedimento, dirige-lhe a palavra para mostrar a segunda trouxinha. Até então, sou seu veículo da palavra, do testemunho.

Novo suspiro de cansaço. Mais um gole d’água. Meu irmão quer mais. Aos poucos, vai abrindo seu corpo que atraiu coisa ruim e se entrega às mãos da mãe Tapuinhas. Fala do intestino. Ela manda que ele se vire de frente. Afrouxa o botão da calça. Igual procedimento.

No intestino é onde mais se demora. Assustadora a primeira coisa que sai lá de dentro. Do tamanho e formato de uma língua de bode, vai saindo, saindo. Ele está concentrado. Eu vejo um parto que em outros tempos seria a foceps. Com a índia e seus poderes de Jurema, só a serventia das mãos. Diferente das trouxinhas, a coisa ruim que sai de sua barriga é da cor e da textura do ferro. Da textura, deduzo pelo barulho ao ser jogada no pratinho.

Ainda mãe Tapuinhas

19 de fevereiro de 2018

Chuva pede recolhimento. Às cinco horas da madrugada, a hora em que acordei, parecia que teríamos um dia de chuvas intermitentes, como ontem e ante-ontem. Fiquei em casa, lendo e relendo o que havia escrito, corrigindo, enxugando, e o tempo passou ligeiro. Agora, já saí da madrugada, que hoje foi curta: são seis horas da manhã.

Ficou tarde para caminhar. E eu achando bom porque assim escrevo. Nos países temperados há mais escritores e leitores por isso. Inverno, neve, frio, as pessoas são obrigadas a ficar mais tempo em casa, no conforto de recantos aquecidos.

Danado é que o sol aparece com vontade de ficar quando sento para escrever às seis horas da manhã. Paciência, sol. Paciência, praia, trópicos. Antecipo o inverno. E minha casa, ao madrugar, não precisa de aquecedor. Basta desligar o ar condicionado e deixar entrar a brisa do mar, agora que não tem mais chuva. Não preciso gastar uma fortuna em taxa de aquecimento. A minha cidade é aquecida o ano inteiro. Mesmo quando chove. Mesmo ao ventinho frio das noites chuvosas de inverno.

Ontem contei a três pessoas a história sucedida na última sexta feira. Em todas as vezes, encerrei a narrativa oral com um sentimento de frustação. Falar é mais pobre do que escrever. Não vou mais contar para ninguém. Quem quiser  que leia.

Como dizia, quando fui interrompida pelo meu filho, que dormiu aqui em casa do sábado para o domingo, a coisa ruim maior de todas que saiu do intestino de meu irmão era da cor e da textura do ferro. Descrevia aquela cena no mesmo lugar em que estou agora. No mesmo quarto, com a luz do dia nublado entrando pela janela. Gosto de escrever sentada na cama, encostada em almofada triangular, travesseiro no colo escorando o caderno. Estava tão absorta que tomei um susto quando Miguel, Mãe?

Pois estava no intestino. Dizem ser o segundo cérebro. De meu irmão, foi de onde saiu mais coisa ruim. Além da língua de bode, tirou de lá umas coisas parecidas com pregos enferrujados de portas antigas, grandes, recobertos de salitre.

Colocados no prato de sobremesa, ninguém tocava nesses seres monstruosos, inanimados. Somente as mãos poderosas da índia, lavadas e esterilizadas com água de alfazema a cada parto. Ficariam no prato de sobremesa, junto com outros pratos, de outros pacientes do dia, esperando a hora do Ângelus. A partir dessa hora até a meia noite do dia em que foram retirados dos corpos, deverão ser incinerados no fundo do quintal, simulacro da Grande Mata onde viviam nossos antepassados indígenas.

A jurema, planta cheia de espinhos, é quem comanda a operação.

Vejo as pequeninas mãos da mãe Tapuinhas caminhar mais para cima da barriga, após a retirada de meia dúzia de coisas ruins do intestino. Está chegando no estômago, mãe? Também tenho males de estômago, diz o paciente. Dali ela extraiu duas coisas ruins.

Parecia que estava encerrada a operação. A índia suspira cansada. Toma mais um gole d’água. Meu irmão está com o corpo inteiramente entregue aos cuidados da parteira, que dele não tira vida, mas morte. E fala da rinite, sinusite, bronquite, alergias que se espalham ligeiro como folhas numa ventania.

Meu fio, para chegar na sua cabeça (ori, complemento eu), careço de mais  que um gole d’água. Vou fumar. Vocês se importam? A senhora também bebe, minha mãe? De de manhã até o meio dia bebo café, minha fia. Da tarde pra noite, só água. Passe a caixa de fósforos, minha fia. Eita, a vela se apagou. Eu acendo, mãe. Foi o ventilador, diz ela, vou virar ele para a parede.

Depois de três ou quatro baforadas em cachimbo de boca grande, desses de feira, levanta-se da cadeira e se posta atrás da cadeira de meu irmão, ele virado de costas para ela. Reinicia o mesmo caquiado sutil na testa, logo acima do nariz. Agora não tem o sentido da visão para auxiliar. Apenas o tato.

Na verdade, o tato é o sentido quase único no leu labor cirurgião. A arte da índia está nas mãos. Mãos que tecem fibras de folhas do mato para fazer cestos. Mãos que preparam os alimentos para serem cozidos. Mãos de tirar piolho em cabeça de menino. Agora, em horário de trabalho, suas mãos lhe causam grande cansaço, pois toda a sabedoria que foi buscar na Jurema concretiza-se pelo tato. Mesmo quando está diante da coisa ruim saindo de dentro do corpo, olha pouco. Sua vista está sempre baixa. Mesmo conversando comigo, sua auxiliar, pedindo-me mais e mais água de alfazema, Pedindo para colocar um defumador aceso embaixo da cadeira do paciente antes de principiar o trabalho de cabeça.

Da testa, de onde retira dois ou três parafusos de ferro, passa à cabeça, depois que o paciente lhe fala de suores noturnos. Dali retira uma coisa ruim em formato de cobra. Mostra a ele. O pratinho já está quase cheio. Ele quer mais. Já que está ali, aproveita para uma revisão geral. Diz do joelho.

Mais um suspiro profundo da índia. Porém sua expressão de rosto está tranquila, o pior já passou. Joelho é coisinha leve. Bote a perna aqui no meu colo, meu fio. Olha uma perna longa, vestida de calça caqui, pés calçados com tênis. Quer que tire o sapato? Carece não, meu fio. E as calças, para ficar o joelho de fora? A índia pensa, matuta. E ele se dá conta, Não preciso tirar. Essas calças, de trilha, transformam-se em bermudas. Abre o fecho-eclair na horizontal e nessa hora mãe Tapuinhas relaxa, sorri. Em tantos anos de trabaio, meu fio, nunca tinha visto uma carça desse tipo. Sai uma coisa ruim do joelho esquerdo. Duas do direito. Esse estava mais inframado, não era meu fio? O paciente confirma.

Brincadeiras

A Silvia Laurentino

23 de fevereiro de 2018

Escrever ficção é fazer palavras cruzadas tomando banho de mar. Os neurônios à postos para trabalhar, vestem roupas de praia. Vão brincar de palavras. Quando brincam, viram crianças. É por isso que se recomenda aos velhos fazer palavras cruzadas. Enquanto os neurônios brincam, rejuvenescem.

Com as palavras cruzadas, é a brincadeira de esconde.

No meu tempo de menina, a melhor era Trinta e um. Nunca me perguntei por que esse número e não trinta e dois, trinta e três, a idade de Cristo. Era Trinta e um. Um de nós, o grupo de meninas e meninos, colocava-se contra uma parede ou árvore. O rosto dentro do braço curvo por cima da cabeça, cego. Ganharia tempo quanto mais depressa contasse. Os demais corriam para se esconder. O primeiro encontrado, esse iria para o mesmo muro ou árvore contar até trinta e um. E a brincadeira continuava, até um adulto vir acabar a festa, que era hora de tomar banho e ir para a cama dormir.

Porém o que mais gostam os neurônios não é dessa brincadeira de esconde. É brincar dentro do mar. Por isso, quando têm permissão para brincar, a primeira coisa que fazem é vestir suas roupas de banho. Ah! Neurônios adoram uma praia! Lá, eles não fazem palavras cruzadas. Criam com as palavras. Jogam bola dentro do mar. Cada bola tem uma palavra escrita. Jogam para lá, para cá, constroem uma frase. Que vira um parágrafo, uma página, duas …

Fim de festa

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15 de fevereiro de 2018

Festa é bom antes, durante e depois. Os preparativos, a escolha da roupa, dos arreios.

Conto: meu pai, morando e clinicando em Garanhuns, tinha muitos amigos. Presenciei a prosa dele com um deles, fazendeiro próspero de café e gado. Estávamos em uma comemoração no Hotel Sanatório Tavares Correia. Inauguração da boate. Foi a única vez que vi meu pai beber: whisky com guaraná.

Antes de entrar na boate escurinha, as pessoas conversavam no terraço aprazível do hotel, com cadeiras de vime confortáveis espalhadas ao longo do bar. Esse hotel não ficava a dever nada aos cassinos de São Lourenço de Minas Gerais, ao tempo em que era estação d’água frequentada por Getúlio Vargas. Na conversa com meu pai, dizia o fazendeiro, Olha Zé, não é que as mulheres cariocas são mais bonitas do que as nossas. O que elas sabem é botar os arreios.

Carnaval, então, meu deus do céu! Muitos são os arreios das mulheres e dos homens. É uma das poucas ocasiões em que os homens têm essa chance. Os sabidos. Outros ficam enrustidos, dizendo que não gostam de carnaval. Mentira!

A festa é a melhor do ano. As outras todas duram um dia, uma noite. Carnaval são quatro dias. Para os verdadeiros foliões, mais.

Falta-me agora umas amigas de antigamente, do tempo dos bailes na AGA (Associação Garanhuense de Atletismo), clube das grandes orquestras, boleros. No outro dia do baile de sábado, nos reuníamos para comentar a festa. O assunto às vezes rendia até o recreio da segunda feira. Era como fazer o balanço de lucros e perdas.

Vamos ao balanço do carnaval 2018. Quem sempre animou mais o carnaval, fosse ele em qualquer recanto do planeta, foram os veados e as putas. Aqueles continuam, muito embora às vezes ocupem uma rua só para eles, segregados. O que é ruim, pois sua alegria faz falta.

A língua inglesa, dominante no mundo, criou a denominação guarda-chuva para as mais de cem nomeações hoje existente: gays. Que significa alegres. O resto, são firulas. Ou invencionices copiadas dos americanos, que criaram a mania de, para encobrir o problema, nomeá-lo. Sentem-se incomodados com as minorias, com sua alegre irreverência, com sua alegria desbragada, e danam-se a lhes dar nomeações. E incriminar quem não obedece à nova sinalização.

Que grande bobagem não poder falar abertamente veado, bicha, frango. (Antes da televisão uniformizar a linguagem brasileira, um paulista que chegasse no Recife perguntando por um lugar bom para comer frango, arriscava-se a ser encaminhado para outro que não restaurante). Querem ser respeitados em seus direitos? Nada mais merecido. Pois ressignifiquem a linguagem popular. E deixem de macaquear o lixo produzido nos Estados Unidos da América. Porque, em matéria de liberdade, aquele grande país promoveu a primeira democracia do mundo. Mas em matéria de direitos civis, o ranço da religião puritana os levou à multiplicidade de nomeações para encobrir a ferida mais profunda: uma aversão a qualquer forma de prazer.

Sapatão é uma palavrinha tão simpática! No aniversário de uma amiga, com verdadeiro espírito gay, ela fez questão de ser fotografada pela amiga mostrando a sola do sapato número quarenta. Mais apropriado seria a designação aos travestis, que botam silicone nos peitos, se vestem de mulher, tomam hormônio para reduzir os pelos, tantos arreios, mas não podem reduzir o tamanho dos pés.

Voltemos ao balanço do carnaval. Se gays não faltaram, cadê as putas? Coitadas, reduziram-se a esmoleiras, sem um centavo para uma fantasia de carnaval.

Um jornalista pernambucano escreveu um livro de ficção sobre o cineasta Rosseline no Recife. A descrição dos cenários da cidade nos anos cinquenta do século passado, aqui, a nossa década de ouro, é uma beleza. Mas faltou ao escritor mais vida às personagens. Só se salvam as conversas no bar de dona Bombom. Precisava entrar mais a fundo no universo das putas, nos terreiros de Xangô. Sendo homem, para escrever sobre mulher, é preciso uma intimidade que tem um Chico Buarque de Holanda, para citar apenas um entre muitos. Homem para escrever sobre mulher, carece de penetrá-la até o fundo de suas entranhas. O mesmo para a mulher escrever sobre homem.

Acabaram-se os puteiros da Ilha do Recife. De grandes noitadas. Estas, descritas magnificamente no referido romance que, não por acaso, se mistura com o carnaval. Nada nessa cidade prospera sem passar pelo carnaval.

No baile do bloco Paraquedista Real, vi uma moça com uma bela frase escrita em letras grandes no diadema que usava: Alma de Puta. Pelo menos a alma de alguma chegou lá.

Quarta feira de cinzas 02

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14 de fevereiro de 2018

Finalmente, a quarta-feira de cinzas. Os blocos se despedindo do carnaval. As véia de véu, terço e missal indo para a missa.

Outro dia nublado, bom de caminhar. Mar cheio, rumo mais uma vez a Brasília Teimosa. Passo apenas por uma igreja, da Assembleia de Deus. Uma escadinha de cinco degraus de um lado, acesso a cadeirantes do outro. A porta está entreaberta e vejo o salão de culto, sem imagens, sem velas. Cadeiras de plástico, as mesmas que povoam toda a orla. Ninguém dentro. Sigo. Saí de casa às 5:30. Deve de ser 5:45 quando avisto de novo o mar e atravesso a rua para chegar ao final do calçadão da Brasília. Ouço música de carnaval, boa, frevo. Em um dos últimos bares à beira mar do Pina ainda é carnaval. Dou as costas e vou em frente, com as passadas ritmadas pelo som da orquestra que vai se afastando, se afastando, até sumir e se ouvir apenas o soberano mar bravio nas pedras e na murada construída em seu auxílio.

A briga do mar com as rochas inverte o gênero desses elementos. O mar é feminino, la mer, como dizem os franceses. E a rocha, masculino. Na aparência, rochas são sólidas, corajosas, fortes. Porém é o feminino mar, com sua constância de bater e recuar, bater e recuar, quem molda a pesada rocha, avança, escolhe sua praia. Até quando a rocha (o) não mais o contém, ao mar (a), e os humanos são obrigados a acrescentar muralhas. Que passam a ter outra serventia: anúncio de blocos de carnaval (Tubarões da Brasília, saiu no domingo de carnaval, perdi), propagandas de comércio, de igrejas, de deus. Nunca seu nome foi tão usado em vão.

Enquanto caminhei, peguei chuviscos. Agora, para iniciar o tempo sombrio da quaresma, do roxo, do preto, chove forte. Chuva de vento, daquele que entra por qualquer fresta zunindo nos ouvidos. Que enlouquece os coqueiros com ânsias de voar, fossem passarinhos.

Não poderia nomear a crônica de hoje com outro título que não fosse Quarta Feira de Cinzas. Repetido, passa a ser 02. Minha amiga das letras, Maria Flora, que até ante-ontem era leitora perspicaz e cuidadosa de meus escritos, rebelou-se contra o zero das minhas crônicas do Momentear. Seu comentário não aparece no blog, mas chegou ao meu e-mail.

“Vale para os nove primeiros dias do mês: não vai zero antes do número! O zero só tem função para preencher os espaços vazios nos formulários de computador. O povo passou a usar indiscriminadamente esse zero em todo lugar. Por favor, volte à pureza dos números essenciais nas datas do início do mês. Além de inútil, o zero à esquerda do número (simples aritmética) suja a limpidez da quase-frase de uma linha da data”.

Ora, ora, querida amiga. Pois se esse bloco está na rua justamente fantasiado de computador? Num blog? O mais importante, porém, é que acho mais bonito o algarismo precedido do zero do que sozinho, com a pureza dos números essenciais. Quero-os impuros. Como fossem uma jangada saindo ao mar, os números sozinhos carecem do zero aos primeiros dias do mês, enquanto dura o impulso manual dos pescadores. Depois, aí pelo dia 10, chega o motor à diesel e a jangada, com seus dois pescadores a bordo, pode seguir sozinha rumo ao alto mar.

Nessa quarta feira de cinzas em que a chuva intermitente me obriga a abrir e fechar janelas, aproveito para me comunicar diretamente com meus leitores. Alguns, tão avessos à tecnologia como eu, preferem e-mail ou whatsapp. Vejam que linda mensagem recebi por este último:

“É carnaval gostosamente sem ser carnaval. / É mais do que carnaval no seu suor horizontal. / É vida contada nos dedos sensíveis da observação vertical”. Luiz Otávio Cavalcanti se fez poeta quase do calibre de João Cabral.

Também repasso para vocês as palavras de Lourdes Rodrigues, por pura vaidade, embora saiba que ela exagera:

“Teresa, querida, você é uma escritora em sua plenitude. Vejo-a como Hemingway com um bloquinho na mão, anotando tudo que o seu olhar de escritora capta para escrever depois. Qualquer pessoa que passe pelo seu caminho torna-se personagem, como Humberto. Acabou de fazer um romance, fez um blog ou bloco como você mesma o chama, participa da revista Será, está escrevendo pelas paredes como Sade. Isso é muito bom. Muito bom mesmo. Fiquei feliz com a sua menção à Oficina, mais ainda quando falou da sua insegurança na publicação dos seus contos nas Escrituras e, ao escrever o seu romance, foi encontrar lá, num daqueles contos, um insight decisivo para o enredo”.

Encerro essa “Quarta Feira de Cinzas 02” dizendo que, por essas e por outras, estou tão contente com meu bloco, que sigo em frente com ele por onde for. Estandarte na mão – caderno, caneta, computador e celular para fotografias –, certamente me acompanhará a Lisboa e Cabo Verde, para onde irei no último dia desse mês de fevereiro.